Jardim de Burle Marx
No jardim de Burle Marx, evocado em seu diálogo imaginário com Carlos Fernando de Moura Delphim, a natureza se torna poesia viva: as águas se abrem em espelhos ornados por ninfeias (Nymphaea spp.), juncos (Juncus effusus) e aguapés (Eichhornia crassipes), enquanto a Maranta burle-marxii, batizada em sua homenagem, e a exuberante orelha-de-elefante Alocasia macrorhiza testemunham sua devoção às formas tropicais. Mais do que cultivar plantas, Burle Marx cultivava encontros – entre o humano e o natural, entre a arte e o cosmos –, e cada espécie escolhida reflete esse amor universal que ele proclamava, transformando o jardim em obra-prima da vida e da eternidade.
Para a cidade, o fato de possuir um jardim de Burle Marx já a distingue. Esse valor deve ser divulgado e reconhecido pela população, não apenas por possibilitar atividades lúdicas e educativas, mas também por servir de referência para as futuras gerações que crescem no entorno de um dos maiores polos de produção de ornamentais do país.
A água é um elemento fundamental para toda forma de vida e deve, sempre que possível, ser evidenciada em qualquer jardim. Burle Marx utilizava amplamente plantas aquáticas em seus projetos. Elas desempenham papel essencial na regulação dos ecossistemas hídricos, não apenas oferecendo alimento e abrigo à ictiofauna, mas também contribuindo para a fixação de nitrogênio e de outros compostos em excesso presentes em águas residuais urbanas.
O diálogo ficcional a seguir foi criado por Carlos Fernando de Moura Delphim, paisagista responsável pelos jardins da Casa da Memória em parceria com Rafael de Brito, inspirado na relação de amizade que ele e Roberto Burle Marx cultivaram ao longo de muitos anos. Trata-se de um olhar íntimo e repleto de curiosidades sobre a personalidade, a visão e as preferências de Burle Marx – uma surpresa e uma recompensa para o visitante mais curioso.
Carlos Fernando Moura Delphim (CFMD) – Roberto, quando o conheci, parece não ter sido um encontro, mas um reencontro. Algo maior nos ligou, como uma cumplicidade, um pacto. Nos interessávamos pelos mesmos temas, sentíamos amor por todas as criaturas, pela Criação.
Roberto Burle Marx (RBM) – Pessoas que compartilham uma ligação espiritual profunda se sentem ligadas por um fascínio que transcende as vidas terrenas. Você sabe: sempre defendi o amor. Amei a todos. O cosmos, o mundo, os seres vivos, a vida, da qual fui despojado... Quando meu pai morreu, chorei todos os dias durante um ano. Um ano que hoje me parece um segundo.
CFMD – Tão logo o conheci, você me convidou pra ir ao seu sítio, onde me acolheu com tanta hospitalidade!
RBM – Sim, na cidade vivemos a vida real, no sítio impera a magia da comunhão entre todos os seres. Essa magia também pode ser percebida na Fazenda Nyagara ou mesmo aqui neste jardim da Casa da Memória de Leopoldina.
CFMD – Você sempre foi alegre. Lembro-me de você cantando a Berceuse de Brahms com seu irmão Walter ao piano: Guten Abend, gute Nacht, mit Rosen bedacht... [Boa noite, boa noite, com rosas...]. Mas não era com rosas que você adornava suas noites, era com as mais belas e pujantes flores tropicais, cuja beleza você nos ensinou a ver.
RBM – A luz dos trópicos cega os que não sabem ver. São cegos os que dão às plantas o nome de mato; que chamam as árvores de madeira e os animais de caça. Quando todos consideravam a rosa a rainha das flores, apresentei novas candidatas ao reino vegetal: as canelas-de-ema, as bromélias, as helicônias. Falando nisso, veja como estão lindas as Heliconia episcopalis da Casa da Memória. Suas belas inflorescências parecem mesmo um chapéu de bispo, que dá nome à espécie.
CFMD – Roberto, o sítio em que você viveu é o reino que lhe coube por merecimento neste mundo que você tanto amou.
RBM – Se quiser me ver, venha ao sítio, onde ainda vivo. Sou a flor que se abre, o raio de sol que ofusca seus olhos, o perfume que o inebria, a sombra que o abriga.
CFMD – Você foi puro coração, um amor ígneo, pleno de força criadora. Seu amor estendia-se igualmente a todos os seres vivos, sem distinção. Um príncipe, o menino vendendo camarão, sua cachorrinha, a todos você amava e acolhia com igual carinho.
RBM – Quem ama o mundo eterno não saberia amar uma só criatura. Todos são iguais, tudo é igual. Um mais um é igual a mil. Em vida, criei vida, hoje contemplo o que leguei à humanidade.
CFMD – Nunca me lembro do labiríntico nome de sua cachorrinha. Você a punha ao colo, ela tinha um olhar arregalado. Você ficava dizendo: nabococa damamoca. Depois a chamava de zoiúda! Contei-lhe que em minha família as pessoas falavam assim com as criancinhas e perguntei-lhe se era algum costume, quem sabe, do Recife. Você respondeu: “É burlesco”.
RBM – Se há alguma criatura que saiba mais receber e oferecer amor é o cachorro, mais ainda uma femeazinha. Temos muito a aprender com eles.
CFMD – Levei minha sobrinha de uns dez anos ao sítio. Vocês conversavam, não como gente, mas como seres encantados. Para ela, você era algo mágico, como um Gepeto, capaz de dar vida a um boneco feito de nó-de-pinho. Ela sentia-se como se estivesse dentro de um livro de contos de fadas.
RBM – Quem tem livre sua alma é uma eterna criança. As portas do coração estão abertas a todos que são libertos de maus propósitos.
CFMD – Você cuidava de sua ama-seca quase centenária; trabalhava lado a lado com seus jardineiros; contratava os moradores de Guaratiba; criava viveiros de plantas para melhorar seus níveis de vida; pintava com rapazinhos da região, ajudando; orientava o cozinheiro; recebia jornalistas, celebridades, pescadores... Todos eram iguais.
RBM – Tudo é igual, tudo é o Um, esse princípio unificador presente no embrião de todas as coisas, causa e efeito de tudo no mundo. Como são tolas e ingênuas as vagas pretensões humanas! Os homens desprezam o que há de mais valioso, trocando-o por ninharias que nunca alçam às alturas reservadas às grandes almas.
CFMD – Toda vez que eu ia ao sítio, você me mostrava o que havia de belo: seus quadros, nos quais você recriava o mundo; a casa, com coleções de arte; o jardim, com as flores que você plantou, os frutos que colhia e servia aos convivas. Tudo seu era grande: seus cabelos, seu coração, os objetos, a capacidade de amar, o saber, tudo, tudo. O sítio foi o mundo que você criou, recriou.
RBM – Não, não criei nem recriei o mundo. Os trópicos são por demais complexos para serem assimilados por nós. Eu o apreendi e reorganizei com meu olhar de artista. Ensinei os homens a vê-lo, a vivê-lo. Quem hoje se deleita em meus jardins aprende a ver o universo tropical, só que esse é muito mais complexo. Criei uma miniatura desses trópicos. Sim, tudo meu era grande, até essa miniatura. No sítio eu podia pintar telas enormes, receber quantos amigos quisesse em vastas mesas onde todos podiam se sentar, ter folhas quase da minha altura.
CFMD – Hoje você vive em lembranças e nos sonhos de todos que, como eu, o conheceram. Sempre sonho que visito seu sítio, que ando entre aleias de árvores gigantescas, imagens como nunca supus existir.
RBM – E existem, se se revelam no mundo dos sonhos. Sonhos são outro mundo, nele existem as trevas, sua luz interior que em nada difere da luz do dia. É esse mundo que nos permite este diálogo, é ele que liga os vivos aos dos que se foram.
CFMD – Você nunca distinguiu um homem poderoso em detrimento de um humilde. A que você atribui isso?
RBM – O homem é feito de barro, terra e água. O vocábulo homem deriva de húmus. O húmus é a terra, a água, são as substâncias que geram e nutrem a vida. Sem húmus não há vida. A palavra humilde também decorre de húmus; quem não possui húmus nada pode gerar. O artista é fértil, e tão maior será quanto mais se deixar fecundar por essa substância que é a base da vida, o húmus. Ai dos olhos indiferentes que não veem a beleza do universo! Ai do artista que não se deixa fecundar pelo germe da beleza! Homem, humildade, umidade, húmus, tudo é vida, tudo é arte.
CFMD – Um dia em que dormi no sítio, acordei cedo e fui olhar suas coleções na grande sala de visitas, onde ficava o piano. Ouvi você cantando em voz bem alta à porta do quarto onde dormi. Era evidente que você queria me acordar. Você não gostava que os hóspedes acordassem tarde. Foi muito engraçado quando eu saí da sala já vestido e pronto para acompanhá-lo ao desjejum. Depois do lauto café da manhã, você conduzia os convidados mais sensíveis para mostrar sua coleção de plantas. Você ia dizendo o nome das espécies ou famílias: “Esta é uma euforbiácea que eu trouxe do norte da Colômbia; essa é o filodendro que você me trouxe da Chapada dos Guimarães, veja como cresceu! Aquela é uma helicônia da Costa Rica; esta é uma ... é uma... jenessepácia”.
RBM – Nunca esquecia de alguém que me dava uma muda. Nem dos lugares onde as coletava. Hoje não poderia fazê-lo, os órgãos ambientais iriam me infligir penalidades. Só que os habitats de muitas plantas que eu coletei, reproduzi e dispersei por este mundo afora já não existem. Por isso sempre lutei contra a destruição da natureza.
CFMD – Sempre procurei você para apontar ameaças a bens naturais e vê-lo denunciá-las à imprensa. Lembra que um dia você me chamou a seu escritório em Laranjeiras para reclamar de um diretor do Jardim Botânico, onde eu trabalhava, porque ele queria colocar música em todo o parque? Você esperava que eu concordaria com você e ficou decepcionado com minha resposta: “Não, Roberto, eu acho ótimo!” Você só se recuperou quando arrematei: “Acho ótimo, Roberto, se esse idiota instalar aparelhos musicais no jardim, vamos encher o Theatro Municipal de passarinhos!”
RBM – Lembro sim, chamei você para poder obter dados para uma entrevista. Logo em seguida chegaram os jornalistas e eu repeti o que você dissera e nunca mais se falou desse absurdo.
CFMD – Você sempre foi dotado de um raro senso de humor. Tinha quem achasse que nós tratávamos de trabalho, o que nunca aconteceu. Só falávamos de coisas alegres e engraçadas.
RBM – É mesmo, acho que o que distingue o homem de outras criaturas não é a razão, mas o humor.
CFMD – Como é viver sem matéria? Você soube tão bem transformar matéria, inerte ou dotada de vida, em arte: a terra em flores, aterros em parques, tintas em pinturas, gemas em joias.
RBM – A matéria já não mais existe para mim. A obra que leguei ao mundo é perene, mas não é eterna. Enquanto um ser vivente se lembrar de mim, não terei me desprendido totalmente do mundo físico. Só o total esquecimento me libertará, permitindo-me ser puramente luz. Despojado de toda matéria. Serei, então, puro espírito.
CFMD – O que você acha da morte?
RBM – A morte? A morte não existe. Existe a vida e a Eternidade, onde agora existo. Somos um só, únicos. Existe a Luz, a Lux Æterna. Cada dia mais sou luz, eternidade.
CFMD – Bem, vou ter de me despedir de você. Agora só o encontrarei em sonhos ou, quando eu deixar este mundo, no além. Suas palavras sobre a inexistência da morte me preparam para reencontrá-lo e reencontrar tantos outros amigos na Luz, na Lux Æterna.
RBM – Você não vai me encontrar, mas sim todos nós nos reencontraremos sob a forma de não-ser. Deixaremos todos de ser, para podermos penetrar em todas as coisas do mundo material, sob a forma de imaterialidade. Todos poderemos alcançar uma fusão com uma árvore, com uma flor, com aqueles que amamos e julgamos ter perdido. Nada se perdeu. Seremos como um vento que atravessa tudo, que sopra e nos conduz à Lux Æterna. Todos seremos luz, Lux Æterna, Amor Æternus. Até breve!
CFMD – Não, Roberto, não vá ainda. Espere um pouquinho só. Falamos de tantos assuntos fascinantes que acabei me esquecendo do que queria lhe falar. É sobre os jardins da Casa da Memória em Leopoldina, para a qual você fez um projeto. Queria saber em que esses jardins se ligam às nossas conversas.
RBM – Em tudo, eu diria, por ser um jardim. Esse tem a ver com qualquer outro, projetado ou não por mim. Quantos temas recorrentes aí se intercruzam: a flora brasileira, sobretudo a da Zona da Mata; os viajantes que por ali andaram, que descreveram e classificaram essas espécies; como isso influiu na escolha das plantas; as marcas que deixei, como a belíssima Brownea grandiceps e o lago das ninfeias, em forma de ameba, típica do modernismo e de uma fase de meu trabalho; o rio Pomba e seus habitantes aquáticos, anfíbios e os terrestres em seu entorno...
E veja, não posso deixar de me lembrar aqui de Luís Edmundo de Mello Barreto, amigo e mestre em botânica, com quem tanto aprendi sobre as riquezas do nosso bioma. Foi ele quem primeiro me apresentou à ideia de valorizar as espécies nativas – muitas delas nascidas nos solos de Minas Gerais. Nossa relação intelectual foi um sopro fecundo de descobertas e encantamentos, e a região de Leopoldina, com sua diversidade, sua história e seus jardins, me traz ecos desse diálogo que ultrapassa o tempo.
Os jardins da Casa da Memória são, portanto, também uma homenagem a essas influências – a Melo Barreto, às paisagens da Zona da Mata, às ideias que germinaram entre amigos que viam no Brasil uma fonte inesgotável de beleza e identidade. Mesmo vocês, do Santa Rosa Bureau Cultural, que tanto se infiltraram no passado da Casa da Memória, propondo ações para o presente e o futuro. Posso até pensar que Affonso Ávila esteja presente, de uma forma impalpável, nos mostrando como “colher a rosa no ramo propício enquanto é vermelha e saborear o odor a cor o íntimo calor”.